domingo, 26 de dezembro de 2010

A caminho do Heliocentrismo

Sumário para o blogonauta

1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Descobrimentos e a "ciência" (3)
9. Os Lusíadas: significado da epopeia
10. As "contra-epopeias"
11. A caminho do modelo heliocêntrico
12. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
13. Medição das velocidades das galáxias (Efeito de Doppler)
14. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
15. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
16. Modelo de Einstein
17. Modelo de Friedmann-Lemaître.

Uma imagem por post

Esta belíssima galáxia, uma das mais brilhantes do nosso céu e muito semelhante, em tamanho, à Via Láctea, fica a 11,8 milhões de anos-luz a Norte da constelação da Ursa Maior.


No princípio era Aristóteles...
Para o Estagirita (de Estagira, uma antiga cidade da Macedónia, onde nasceu Aristóteles), o Universo era finito, esférico e limitado pela esfera das estrelas fixas, fora da qual nada existia. A sua estrutura era ordenada e hierarquizada. Existiam cinco elementos: quatro terrestres ou sub-lunares (a terra, a água, o ar e o fogo) e um divino (o éter que constituía os céus, único local onde dominava a perfeição). Cada elemento possuía o seu lugar natural: o éter, nos céus; a terra e a água, no centro do Universo; o ar e o fogo, na região entre a Terra e a Lua. A Terra está imóvel no centro do Universo e todas outras esferas orbitam à sua volta.
Resumindo, temos:
- o geocentrismo, com a Terra rigorosamente imóvel a ocupar o centro do universo;
- a divisão do universo em dois mundos: o cosmos, onde tudo é puro e inalterável, o mundo do éter (a quintessência) e dos movimentos perfeitos, circulares; o mundo sublunar, o mundo da imperfeição e da mudança, o mundo da Terra e dos quatro elementos (terra, água, ar e fogo), o mundo dos movimentos rectilíneos, ascendentes ou descendentes;
- o movimento circular uniforme (ou a combinação de movimentos deste tipo) como o único permitido para os corpos celestes.


Normalmente imaginamos os modelos a duas dimensões. E, por uma questão de simplificação fala-se de círculos, mas os modelos supõem esferas onde orbitam os planetas: a partir da Terra, que é o seu centro, as esferas da Lua, de Mercúrio, de Vénus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno e, finalmente, o Firmamento ou esfera das estrelas fixas.
Este modelo, quase universalmente aceite, foi aperfeiçoado por Ptolomeu à custa de vários «estratagemas» que vou recordar (a sua explicação detalhada foi feita no post ##) nesta imagem, para que se entenda do que estou a falar durante a apresentacão das várias etapas a caminho do modelo heliocêntrico.

Ptolomeu utilizou um mecanismo complexo com círculos excêntricos e epiciclos. O Excêntrico (ponto a preto, na imagem) é o verdadeiro centro do movimento do planeta em torno da Terra e não a Terra, que Aristóteles considerava o centro. Os planetas moviam-se uniformemente em relação ao Equante e não à Terra.

Os rebeldes gregos
Poderia começar por recordar o modelo pirocêntrico de Filolau de Cortona (séc. V aC), já apresentado no post referido, como o primeiro modelo não geocêntrico. Mas esse tem pouco a ver com a nossa caminhada de hoje.

HERÁCLIDES PÔNTICO (390-310 aC)
Foi um filósofo e astrónomo grego que viveu em Heraclea Pontica (agora Karadeniz Ereğli, Turquia). Um trocadilho do seu nome com Heráclides “Pompicus” (pomposo, vaidoso) parece sugerir alguma desonestidade intelectual, a menos que seja uma referência à sua obesidade. Diogenes Laércio acusa-o de ter pedido a um amigo que, ao morrer, escondesse o seu corpo e dissesse que subira ao céu, para ter direito a honras divinas. Os amigos julgavam-no meio louco e chamavam-no paradoxólogo, “inventor de paradoxos”. De qualquer modo foi um intelectual muito versátil como “cientista” e escritor.
Terá sido o primeiro a propor que a Terra gira em torno do seu eixo, do leste para oeste, cada 24 horas, o que explicava o movimento diurno aparente das estrelas.
Apesar de "não haver nenhuma menção na literatura antiga" (1*), muitos pensam que ele desenvolveu um modelo em que Mercúrio e Vénus orbitavam em volta do Sol e este com os restantes planetas em volta da Terra.

Apesar de parcialmente geocêntrico, trata-se de um grande salto conceptual, pois contradiz Aristóteles, que afirmava que a Terra estava fixa (em repouso) no centro do Universo.


ARISTARCO DE SAMOS (310-230 aC)
Foi o primeiro a propor o modelo heliocêntrico, completando o de Heráclides: o Sol estava no centro e todos os planetas giravam à sua volta. Aristarco procurava assim explicar um dos grandes problemas do modelo geocéntrico: os planetas, especialmente Vénus e Marte, apresentavam trajectórias erráticas (retrogradação; ver post de 3.Abril.2010, quando falo de Marte), violando a doutrina aristotélica segundo a qual todos os movimentos devem ser círculos perfeitos. Esta “perversão” era tão marcante que até deu nome aos planetas: planétes (πλανήτης), “vagabundo, errante”; os babilónios chamavam a Marte bibbu, “ovelha selvagem” (2*) e os egípcios, sekded-ef em khetkhet, “o que viaja para tras”.
O seu único livro conhecido, Sobre os tamanhos e as distâncias do Sol e da Lua, baseia-se no modelo geocéntrico.
O que sabemos do seu modelo heliocéntrico provém de duas citações:
- uma de Arquimedes, no seu Arenarius (Ψαμμίτης), “O Contador de Areia”, um estudo em que introduz um sistema de numeração próprio, que lhe permite calcular e exprimir quantidades enormes, até 8 x 1016, um número que julgava suficiente para contar o número de grãos de areia do Universo, e em que faz uma série de considerações astronómicas. É nele que fala de Aristarco:
"Aristarco de Samos publicou um livro que consistia em algumas hipóteses cujas premissas conduzem ao resultado de que o Universo é muitas vezes maior do que aquilo a que agora se dá esse nome. As suas hipóteses são que as estrelas fixas e o Sol se mantêm imóveis, que a Terra gira em torno do Sol na circunferência de um círculo, com o Sol situado no meio da órbita, e que a esfera das estrelas fixas, situada aproximadamente com o mesmo centro que o Sol, é tão grande que o círculo em que ele supõe que a Terra gira está para a distância das estrelas fixas na mesma proporção que o centro da esfera está para a superfície." (Edição bilingue grego/latim, pp. 4 e 7);
- outra de Plutarco, no seu De facie in orbe lunae ("Sobre a face visível no orbe da Lua"; tradução portuguesa): «Ainda estava a falar quando Farnaces me interrompeu: “Aqui está de novo a velha estratégia da Academia para nos refutar; cada vez que se metem a falar com outros, não oferecem qualquer arrazoado das ideias que eles próprios defendem, mas mantêm os interlocutores na defensiva, a não ser que eles se transformem em acusadores. Ora bem, hoje não me fareis sair em defesa dos Estóicos contra as vossas acusações, antes de vós próprios prestardes contas por virardes o mundo do avesso”. Então Lúcio disse, rindo-se: Meu caro, só peço que não interponhas uma acção contra mim por impiedade, como Cleantes (sucessor de Zenão na direcção da escola estóica escreveu um tratado contra Aristarco) pensou que os Gregos deviam fazer contra Aristarco de Samos, sob pretexto de que ele movera o coração do mundo ao tentar salvar os fenómenos supondo que o céu permanece imóvel e que a Terra se move ao longo de uma órbita oblíqua (ao longo da eclíptica), ao mesmo tempo que gira em redor do seu eixo. Nós próprios (os Académicos, seguidores da Academia de Platão, que defendiam a natureza terrestre da Lua) não apresentamos qualquer proposta alternativa. Mas aqueles que consideram que a Lua é como a Terra, caríssimo, como podem eles virar tudo do avesso mais do que vós (os Estóicos), que fixais a Terra aqui mesmo, suspensa no ar? Ela, que é muito maior que a Lua, como mostram os cálculos dos matemáticos que, durante os eclipses, por meio dos trânsitos da Lua através da sombra, calculam a sua dimensão pelo tempo que esta oculta” (pp. 36-37).

Como vimos num dos posts anteriores Aristarco conseguiu medir a distância da Terra à Lua e determinar que o Sol é muito maior que a Terra. Daí a sua proposta de que seria a Terra a girar em torno do Sol e não contrário.

As suas revolucionárias ideas astronómicas não foram bem recebidas e acabaram por ser rejeitadas, por razões de váriadas ordens:
1) antropocêntrica ou egocêntrica: nós, os únicos inteligentes do Universo, só poderíamos estar no centro e tudo o resto à nossa volta;
2) social: todos viam que o Sol andava à volta da Terra;
3) científicas: os críticos apresentavam três falhas:
- se a Terra se movesse devíamos sentir o vento na cara e o chão a fugir-nos debaixo dos pés quando saltássemos; não conseguiam perceber que a Terra se move em bloco com tudo o que a constitui;
- a Terra móvel era incompatível com a ideia grega de que tudo tende para o centro e, como a Terra estava no centro, não se podia mover; se o Sol fosse o centro, por que cairiam os objectos para a Terra em vez de cair para o Sol?;
- a ausência aparente da mudança das estrelas (paralaxe, movimiento observado de umas estrelas em relação às outras enquanto a Terra se move em volta do Sol); Aristarco tinha razão ao responder que as estrelas estavam infinitamente afastadas e por isso a paralaxe era tão pequena que não era possível detectá-la.


A enxurrada medieval

MARTIANUS CAPELLA (séc.V dC)
Foi um escritor “pagão” (3*) e o primeiro a propor o sistema que estruturaria a educação medieval: o das sete Artes Liberais, divididas em dois grupos:
- Trivium ("os três caminhos", genericamente equivalente às nossas “Letras”): Gramática, Retórica e Lógica;
- Quadrivium ("os quatro caminhos", genericamente equivalente às nossas “Ciências”): Aritmética, Astronomia, Música e Geometria).


Este sistema foi descrito numa obra enciclopédica única De Nuptiis Philologiae et Mercurii ("Sobre o casamento da Filologia e Mercúrio”), por vezes chamada De septem disciplinis ("Sobre as sete disciplinas"). Trata-se de uma alegoria didáctica, construída por uma elaborada mistura de prosa e verso, cheia de metáforas e expressões bizarras, que procura abarcar a cultura do seu tempo. O próprio título refere-se à esta união alegórica do exercício intelectualmente lucrativo (Mercúrio) com a aprendizagem por meio da arte das letras (Filologia).
No livro VIII, descreve um modelo geo-heliocêntrico, segundo o qual a Terra repousa no centro do Universo rodeada pelas estrelas, os planetas e o Sol em torno do qual orbitam Mercúrio e Vénus.

Modelo de M. Capella: Representação de V. Nabot (1573)


ARYABHATA (476–550)
Foi o primeiro dos grandes matemáticos-astrónomos da idade clássica da Índia. Aos 23 anos, escreveu, em sânscrito, a sua obra principal, Aryabhatiya, de que há uma tradução inglesa. Dividida em 4 capítulos num total de 121 versos (slokas), é simultaneamente um compêndio de matemática e de astronomia.

Matemática
Talvez a mais extraordinária das suas descobertas seja a determinação do valor do número pi (π). No II Capítulo (Gaṇitapāda), v. 10, escreveu:
caturadhikam śatamaṣṭaguṇam dvāṣaṣṭistathā sahasrāṇām
ayutadvayaviṣkambhasyāsanno vṛttapariṇāhaḥ.
Junta 4 a 100, multiplica por 8 e soma-lhe 62000.
O resultado é aproximadamente (āsanna) a circunferência de um círculo cujo diâmetro é 20 000.
Fazendo as contas temos a relação entre a circunferência e o diâmetro, o número (π):

((4+100) × 8 + 62000) / 20000 = 62832/20000 = 3,1416 (com 5 algarismos significativos).

Há quem especule que āsanna indica não só que se trata de uma aproximação mas também que este número não é mensurável, sendo portanto um número “irracional” (um número que não pode ser obtido pela divisão de dois números inteiros), o que só foi provado na Europa em 1761 por Lambert.
No mesmo capítulo, v. 6, indica como determinar a área de um triângulo
tribhujasya phalashariram samadalakoti bhujardhasamvargah
A área de um triângulo é o produto da perpendicular por metade da base.

Modelo geocêntrico ou heliocêntrico?
Aryabhata descreve um modelo geocêntrico, no qual o movimento de cada planeta é governado por dois epiciclos, um mais pequeno manda (lento) e outro maior śīghra (rápido).
Por outro lado, afirma que a Terra roda sobre o seu próprio eixo, completando uma volta (rotação sideral) em 23h 56m e 4,1s (valor actual 23h 56m 4,091s): “Como um homem num barco avançando vê os objectos estacionários movendo-se para trás, também as estrelas estacionárias são vistas pelas pessoas em Lanka (Sri-Lanka, que está quase no equador: 7 00 N, 81 00 E) a mover-se exactamente para Oeste”. Além disso, referencia as órbitas planetárias relativamente ao Sol.
Por isso, tem sido sugerido que os cálculos de Aryabhata estariam baseados num subjacente modelo heliocêntrico, no qual os planetas orbitavam em volta do Sol. Uns recusam tal interpretação; outros admitem-na. De qualquer modo, ele calculou a duração do ano (ano sideral) como sendo 365d 6 h 12 m 30s (valor actual: 365d 6h 9m 10 s).

A cratera foi quase submersa por fluxos de lava, pelo que agora apenas resta uma crista em forma de arco formada a partir da metade oriental da borda (6,2N 35,1E; 22km de diâmetro), a cerca de 130 km a SW do centro do Mare Tranquillitatis (Mar da Tranquilidade).


Abū ‘Abd Allāh Muhammad ibn Mūsā al-Khwārizmī (Khwārizm (Uzbequistão atual), 780 - Bagdad, 850) foi um matemático, astrónomo, astrólogo, geógrafo e autor persa, de quem se conhecem poucos detalhes de sua vida.
O livro que o imortalizou é o Kitab Al Mukhtassar Fi Hissab Al Jabr Wal Mukabala (Livro do Cálculo Algébrico e Confrontação), que não somente criou a Álgebra (Al Jabr) não só no seu significado moderno, mas sobretudo abrindo uma nova era da matemática.

Foi um avanço revolucionário relativamente ao conceito grego da matemática que era essencialmente geometria: a Álgebra tornou-se uma teoria unificadora que permitiu que os números racionais, irracionais e as grandezas geométricas fossem todos tratados como “objectos algébricos”. Para tratar quaisquer “objectos algébricos” (equações) começava por reduzir a equação a uma das seis formas padrão.
Divulgou a denominação árabe da incógnita nas equações algébricas, xay (coisa), que depois deu origem ao x que hoje é universalmente usado na álgebra.
Do seu nome al-Khwārizmī provêm as palavras algarismo e algoritmo.
Participou na delicada medição do comprimento de um grau terrestre, cujo objectivo era determinar, na suposição de que a terra era redonda, o tamanho desta e a sua circunferência: a operação realizada na planície ao norte do Eufrates e também perto de Palmira, indicou 91 176 m, valor que excede o real, nesse lugar, em apenas 877 metros.
Foi encarregado de verificar e, possivelmente, actualizar o trabalho escrito por Ptolomeu, que acabara de ser traduzido para árabe com o nome de Almagesto (“O Maior”).

Com este livro, os árabes tinham os fundamentos básicos para poderem iniciar a sua própria investigação astronómica. Os filósofos-astrónomos árabes manifestaram um espírito crítico perante a ciência grega, pelo que Ptolomeu não devia ser aceito cegamente.


Abū ʿAlī al-Ḥasan ibn al-Ḥasan ibn al-Haytham (latinizado para Alhacen) (965, Basra (principal porto do Iraque) - 1040, Cairo) foi um cientista polivalente, principalmente na óptica, mas também na física, anatomia, astronomia, engenharia, matemática, medicina, oftalmologia, filosofia, psicologia.

Método científico
O seu Livro de Óptica (Kitāb al-Manāẓir), onde desenvolve uma teoria da visão e uma teoria da luz, é considerado por muitos um contributo essencial para preparar a revolução do séc. XVII. Provou que os raios de luz viajam em linha recta e realizou inúmeras experiências sobre reflexão e refracção, com lentes e espelhos, introduzindo um novo método científico: as suas investigações baseavam-se não em teorias abstractas, mas em evidências experimentais que eram sistemáticas e repetíveis. Este método, muito semelhante ao moderno, desenrolava-se em sete etapas: observação; descrição do problema; formulação da hipótese; testagem da hipótese usando a experimentação; análise dos resultados experimentais; interpretação dos dados e formulação de conclusão; publicação dos resultados.


No livro Al-Shukūk ‛alā Batlamyūs (Aporias contra Ptolomeu) faz uma reflexão sobre a dificuldade em alcançar o conhecimento científico: “A verdade é procurada por si mesma, mas as verdades estão imersas em incertezas e as autoridades científicas não são imunes ao erro”. Por isso a crítica das teorias existentes desempenha um lugar especial no crescimento do saber científico.

Modelo astronómico
No mesmo livro acusa Ptolomeu de algumas contradições: por exemplo, as exigências do movimento circular não são satisfeita pelo Equante ou o absurdo que é relacionar os movimentos físicos reais com imaginários pontos matemáticos, linhas e círculos: “Isto é um ‘arranjinho’ (hay'a) que não pode fazer-se”.
Apesar disso, aceitou o modelo geocêntrico, apresentando uma detalhada descrição da estrutura física das esferas celestes, desenvolvendo o conceito de esfera individual (falak) para os movimentos de cada planeta. A novidade está no facto de, para os astrónomos medievais, as esferas celestiais serem realmente esferas terem uma certa espessura de matéria rarefeita encaixadas umas nas outras, estando cada uma em total contacto com a esfera superior e a inferior.
No livro O Modelo dos Movimentos de Cada um dos Sete Planetas, recentemente descoberto, e na sequência das dúvidas sobre Ptolomeu, descreve o primeiro modelo não-ptolomaico. Eliminando o Equante e os Excêntricos, separando a filosofia natural da astronomia, libertando a cinemática celeste da cosmologia e reduzindo as entidades físicas a entidades geométricas, o seu modelo propõe que a Terra gire sobre o seu eixo e que os centros do movimento sejam pontos geométricos sem qualquer significado físico, como no modelo de Képler.


BIRUNI
Abū Rayhan Muhammad ibn Ahmad al-Bīrūnī, ou simplesmente al-Biruni (15.Set.973, em Kath (hoje Uzbequistão) – 13.Dez.1048, em Ghazni, no actual Afeganistão), foi um erudito e muito versátil muçulmano persa: cientista e físico, antropólogo e psicólogo, astrónomo e astrólogo, químico, historiador, geógrafo, geólogo, matemático, farmacólogo, filósofo e teólogo, professor, viajante.

Método científico
Dissertou sobre a filosofia da ciência e introduziu, em quase todos os campos de investigação em que trabalhou, um “verdadeiro” método científico, muito semelhante ao moderno, nomeadamente no ênfase que deu à experimentação repetida. Preocupava-se com o modo como prevenir tanto os erros sistemáticos e aleatórios, como com "os erros causados pelo uso de pequenos instrumentos e pelos observadores humanos”, pelo que deviam ser feitas múltiplas observações, analisadas qualitativamente e, a partir desses dados, chegar a “um único valor para a constante desejada”, isto é, a uma média aritmética ou a uma "estimativa fiável”.
Ao contrário do seu contemporâneo Avicena, cujo método científico consistia em “primeiro as questões gerais e universais e só depois o trabalho experimental”, Biruni desenvolveu métodos científicos, em que "os universais surgiam do trabalho prático, experimental" e "as teorias são formuladas depois das descobertas”.
Num debate com Avicena, fez a primeira distinção real entre um cientista e um filósofo, considerando Avicena como filósofo e a ele próprio como cientista matemático.
Criticou os seguidores de Aristóteles nos seguintes termos: “O problema com a maior parte das pessoas é a sua extravagância a respeito das opiniões de Aristóteles. Acreditam que não há possibilidade de erros nas suas opiniões, apesar de saberem que ele apenas teorizava com o melhor da sua capacidade”.

Explicação de um eclipse ou mera descrição das fases lunares

Modelo geocêntrico ou heliocêntrico
O historiador e filósofo Will Durant caracteriza assim o seu contributo para a astronomia: “Escreveu tratados sobre o astrolábio, o planisfério, a esfera armilar e estabeleceu tabelas astronómicas para o Sultão Masud. Ele tomou como certo que a Terra é redonda, observou “a atracção de todas as coisas para o centro da Terra” e destacou que os dados astronómicos podem ser explicados quer supondo que a Terra gira diariamente em torno do seu eixo e anualmente em torno do Sol (heliocentrismo) quer pela hipótese inversa (geocentrismo)”.
Considerava que a questão da heliocentricidade era mais filosófica que matemática.
Rejeitou a ideia aristotélica de esferas celestes com órbitas circulares propondo órbitas elípticas.

O modelo é muito mais simples do a máquina de Anticítera (ver post ##), mas é muito provável que descenda dela.


Ala Al-Din Abu'l-Hasan Ali Ibn Ibrahim Ibn al-Shatir (1304 – 1375) foi um astrónomo, matemático, engenheiro e inventor muçulmano árabe que trabalhou como muwaqqit (medidor religioso do tempo) na Umayyad Mosque, a Grande Mesquita de Damasco (Síria).
O seu tratado astronómico mais importante, o Kitab nihayat al-sul fi tashih al-usul (A InvestigaçãoFinal sobre a Rectificação dos Princípios), reformula profundamente os modelos ptolomaicos do Sol, da Lua e dos planetas, eliminando os seus Epiciclos, Excêntricos e o Equante com a introdução de Epiciclos extra, por meio do “par de Tusi” (Tusi-couple), e descrevendo o primeiro modelo do movimento lunar coerente com as observações .
Outro avanço foi a rejeição dos fundamentos filosóficos do modelo ptolomaico substituindo-os pelos empíricos. Ao contrário de muitos astrónomos anteriores, Ibn al-Shatir estava mais interessado em produzir um modelo consistente com as observações do que em apoiar-se nos princípios teóricos da cosmologia ou filosofia natural (ou física aristotélica). Assim, a sua obra foi um ponto de viragem na astronomia, que pode ser considerada uma "Revolução Científica antes do Renascimento" (G. Sabila).


Embora o seu sistema continue a ser claramente geocêntrico, os desenvolvimentos matemáticos, bem como o modelo lunar, são idênticos aos de Copérnico. Isto sugere que Ibn al-Shatir deve ter influenciado Copérnico. Embora se ignore como isto aconteceu, sabe-se que manuscritos gregos referindo o “par de Tusi” circulavam em Itália no séc. XV. Sabe-se também que os diagramas de Copérnico são muito semelhantes aos de Ibn al-Shatir, embora os modelos sejam diferentes. Portanto, é muito provável que Copérnico tenha tido conhecimento dos trabalhos de Ibn al-Shatir: “Enquanto o conceito de Ibn al-Shatir do movimento planetário foi concebido para ter um papel fundamental num modelo planetário centrado na Terra, Copérnico utilizou o mesmo conceito para o seu modelo planetário centrado no Sol. Assim, este desenvolvimento de modelos alternativos permitia um teste empírico dos modelos.” (Y. M. Faruqi).


NILAKANTHA SOMAYAJI (1444–1544)
Foi o principal matemático e astrónomo da escola de Kerala, no Sul do Malabar (Índia).
 

O seu livro principal, o Tantrasamgraha, de 432 slokas (versos sânscritos) divididos em 8 capítulos, contém a maior revisão dos mais antigos modelos planetários indianos para os planetas interiores Mercúrio e Vénus e a primeira formulação rigorosa da equação do centro destes planetas, na história da astronomia.
No seu Aryabhatiyabhasya, um comentário ao Aryabhatiya (499) de Aryabhata, faz uma revisão deste modelo e desenvolveu um sistema planetário parcialmente heliocêntrico: os seis planetas orbitam em torno do Sol, que está em órbita em torno da Terra, semelhante ao sistema que Tycho Brahe apresentará no séc. XVI. Contudo, o de Nilakantha é mais rigoroso na previsão dos movimentos heliocêntricos dos planetas  interiores do que os modelos de Tycho Brahe e de Copérnico e assim permaneceu até que Kepler (séc. XVII) reformou o cálculo para estes planetas seguindo um método muito semelhante ao de Nilakantha.



Nesta amostra de grandes marcos da ciência gostaria de prestar homenagem a este rei tão plurifacetado e que muito contribuiu para o desenvolvimento cultural da Europa.
Nasceu em Toledo (23.Nov.1221) e morreu em Sevilha (4.Abril.1284), tendo o seu coração sido enterrado no Monte Calvário em Jerusalém. Foi um grande governante com uma enorme preocupação científica e literária (daí o cognome de O Sábio).



O GOVERNANTE
Independentemente da sua ambição política, que o envolveu em várias guerras, como aliás era habitual naqueles (e nestes) tempos, pôs em execução políticas de desenvolvimento: impulsionou a economia, nomeadamente com a criação da Mesta, instituição de representação dos pastores e criadores de gado, e fomentou o repovoamento das terras reconquistadas aos muçulmanos.


O LITERATO
A sua obra literária estende-se tanto pela lírica como pela prosa.

O Trovador
Fez a primeira reforma ortográfica do castelhano, que adoptou como língua oficial em vez do latim.
Foi um mecenas generoso do movimento trovadoresco e ele próprio se tornou um dos maiores trovadores e poetas de língua galaico-portuguesa, a mais usada na lírica ibérica do século XIII. Pertenceu a uma geração de trovadores que conseguia conciliar o profano com o religioso. Terá composto 44 “cantigas de amor” e sobretudo de “escárnio e maldizer”. Mas a sua obra mais conhecida é Cantigas de Santa Maria, dedicadas na sua maioria a Nossa Senhora, aos seus milagres, à sua grande bondade na ajuda constante aos débeis, doentes e pecadores, mas também às virtudes cristãs, ao castigo dos vícios e dos pecados. É constituída por 427 composições, musicadas e algumas ilustradas com iluminuras, embora nem todas sejam de sua autoria.
Em homenagem ao seu talento de trovador aqui deixo a Cantiga 279 e como foi musicada.

COMO EL REI PIDIU MERCEE A SANTA MARIA QUE O GUARECESSE DA GRAND' ENFERMIDADE QUE AVIA; E ELA, COMO SENNOR PODEROSA, GUARECÉ-O.

Santa Maria, valed', ai Sennor,
e acorred' a vosso trobador,
que mal le vai.

A tan gran mal e a tan gran door,
Santa Maria, valed', ai Sennor,
como soffr' este vosso loador;
Santa Maria, valed', ai Sennor,
e sã' é ja, se vos en prazer for,
do que diz «ai».
Santa Maria, valed', ai Sennor...

Pois vos Deus fez d'outra cousa mellor
e vos deu por nossa rezõador,
seede-mi ora bõ' ajudador
en est' enssay
Santa Maria, valed', ai Sennor...

Que me faz a mort', ond' eigran pavor,
e o mal que me ten tod' en redor,
que me fez mais verde mia coor
que dun canbrai.
Santa Maria, valed', ai Sennor...

Que fez enton a galardõador
de todo ben e do mal sãador?
Tolleu-ll' a fever e aquel umor
mao e lai.
Santa Maria, valed', ai Sennor...
Fonte: Alfonso X el Sabio (ed. Jesús Montoya), p. 242

Tradução

COMO EL-REI PEDIU MERCÊ A SANTA MARIA QUE O CURASSE DA GRANDE ENFERMIDADE QUE TINHA; E ELA, COMO SENHOR(A) PODEROSA, O CUROU.

Santa Maria, valei-me, ai Senhor(a),
e acorrei ao vosso trovador,
que mal vai.

A tão grande mal e a tão grande dor,
como sofre este vosso elogiador;
e curado seja, se de vosso agrado for,
daquilo que (o obriga a) dizer «ai».

Pois Deus vos fez de outra cousa melhor
e vos deu por nossa protector(a),
sede para mim agora boa auxiliador(a)
neste assalto

que me faz a morte, do que tenho grande pavor,
e no mal que me envolve todo em redor,
que faz mais verde a minha cor
que a de um cambrai (1*).

Que fez então a galardoador(a)
de todo bem e do mal curador(a)?
Tirou-lhe a febre e aquele humor
mau e repugnante.

(1*) Cambrai: tecido muito fino, de cor verde, proveniente da cidade francesa de Cambrai.

EM PROSA publicou obras jurídicas, históricas, científicas e recreativas realizadas ou por si ou a seu mando.

O jurista
Foi um grande legislador, a ele se devendo várias compilações e livros.

O Fuero de las Leyes o Fuero Real de Castilha rompe com o direito baseado nos privilégios, abolindo os inúmeros foros legais particulares e concedendo-os de modo progressivo a cidades e povos. Consta de 550 leis.

El Código de las Siete Partidas procurou dar uniformidade legislativa a todo o Reino, fragmentado em inumeráveis foros. Contém um Prólogo e sete “Partidas” (partes ou capítulos), as quais começam com uma letra do nome do rei, formando um acróstico: A-L-F-O-N-S-O. Cada Partida está dividida em títulos e estes em leis, num total de 182 títulos e 2.802 leis. Foi considerado o legado mais importante da Espanha para a história do direito, dada a sua longa e ampla vigência na Península Ibérica e na América Latina, até ao século XIX.

O Setenario é essencialmente um livro de direito canónico, cuja estrutura se apoia no número mágico sete. Além disso, contém informações de carácter enciclopédico sobre os sacramentos mas também reflexões sobre o culto à natureza do ponto de vista pagão.


O historiador
Participou activamente na redacção da Primeira Crónica Geral de Espanha e numa história universal, a Grande e General Estoria.


O “cientista”
Deu um forte impulso à Escola de Toledo e promoveu a publicação de muitos textos científicos.

Escola de Tradutores de Toledo
Esta escola insere-se no conjunto dos chamados “Tradutores do século XII” que verteram para latim obras clássicas e árabes e hebraicas. Afonso X deu-lhe um grande impulso ao contratar tradutores cristãos, judeus e muçulmanos. Aliás, em 1200 já havia traduções latinas razoavelmente precisas das obras dos principais autores antigos: Aristóteles, Platão, Euclides, Arquimedes, Ptolomeu, Galeno.
Além dos tradutores, desempenharam também um papel fundamental os copistas, geralmente monges, pois não havendo ainda a imprensa o único meio de divulgação eficaz dos livros era copiá-los. Este trabalho terá começado por volta do séculoV.
Em Portugal houve grandes escolas de copistas. Desde o século XII que se conhecem cópias e iluminuras valiosas, sobretudo das escolas dos mosteiros de Alcobaça e de Santa Cruz, mas também, em menor quantidade, de outros mosteiros, com destaque para o de Lorvão, de que se conhece, além de uma Bíblia e o Livro das Aves, o Livro do Apocalipse, considerado por alguns como a mais importante obra da iluminura portuguesa.

       Biblia de Santa Cruz                 Bíblia Morgan de Alcobaça (1240)                 Livro do Apocalipse
       Anterosto (séc. XII)                    Expulsão dos Israelitas de Ai                     de Lorvão (séc. XII)

É aos monges dos mosteiros de Santa Cruz de Coimbra, de Alcobaça e de Lorvão que se devem os primeiros textos em prosa do país: narrativas de vidas de santos, lendas e fábulas.
O período áureo da iluminura em Portugal ocorreu na primeira metade do século XVI, com o Missal de Santa Cruz de Coimbra, os 43 volumes da Leitura Nova, os 15 volumes das Crónicas, o Livro do Armeiro-Mor e o Livro da Nobreza.

Era uma tarefa meticulosa e muito exigente, como se pode ver no texto do scriptorium (estúdio) de Saint-Martin-de-Tours que recomenda aos copistas os cuidados que devem ter na cópia de textos (neste caso, "sagrados"):

O painel superior mostra o copista no seu scriptorium.
A Bíblia dos Jerónimos é uma Bíblia manuscrita e "iluminada" com um luxo requintadíssimo. Aqui temos o Prólogo, onde o comentador se apresenta como sendo Nicolau Lira:
PROLOGVS PRIMVS VENERABLE
FRIS NICOLAI DE LYRA ORDINIS
SERAPHICI FRANSCISCI IN TESTA
MENTVM VETVS DE COMMENDA
TIONE SACRE SCRIPTVRE IN GE
NERALI INCIPIT««««««««««««

"Que tomem lugar os que escrevem as palavras da lei santa, assim como os ensinamentos dos santos padres. Que eles não se permitam misturar as suas tagarelices frívolas, com medo de que essa frivolidade não induza sua mão ao erro. Que consigam textos corrigidos com cuidado, a fim de que a pena do pássaro siga certa pelo seu caminho. Que distingam as nuances dos sentidos das palavras, por membros e incisos, e que coloquem cada ponto em seu lugar, a fim de que o leitor não leia coisas falsas, ou talvez permaneça repentinamente interditado na igreja diante dos seus irmãos na religião. De resto, deve-se fazer obra valiosa, e copiar os livros santos, e o escriba não será privado da sua própria recompensa. Mais do que cavar a videira, é bom copiar livros: lá se trabalha para a venda, aqui, para a alma. Do novo e do antigo, todo o mestre poderá produzir em abundância, se ele ler os ensinamentos dos santos padres."
Não admira pois que fosse muito caro adquirir uma dessas cópias, muitas delas com iluminuras. Disso se dá conta nesta Carta de Gerbert d'Aurillac para o abade de Saint-Julien-de-Tours:
"Tendo considerado que a ciência moral e a ciência da língua não são separadas da filosofia, sempre misturei estudos de bem viver, e estudos de bem falar (...) para me preparar, jamais cessei de constituir uma biblioteca. E mesmo que recentemente em Roma, e em outras regiões da Itália, na Alemanha e também na Bélgica, eu tenha resgatado copistas e cópias de obras a preço de ouro, graças à ajuda benévola, e à solicitude dos meus amigos nessas províncias, do mesmo modo deixe-me vos pedir que seja assim no vosso mosteiro, e por vosso intermediário. No final das cartas nós vos indicaremos o que queremos copiar. Segundo vossas instruções, nós enviaremos o pergaminho para os copistas, e os fundos que serão necessários, sem esquecer não mais de vos indicar a nossa benevolência." (Extrato da Carta 44).

Desta actividade saiu uma grande quantidade de conhecimentos que prepararam o renascimento científico da Europa medieval e forneceram inclusivamente os conhecimentos indispensáveis à realização dos Descobrimentos. Estes tradutores e copistas foram o que são hoje os trabalhadores da construção civil. Anónimos, permitem que os Sisas Vieiras e os Calatravas façam as grandes obras. Esquecidos e ignorados da história carrearam as pedras, abriram os caboucos, permitindo assim que os grandes mestres iniciassem o Renascimento.


Textos científicos
Impulsionou também a criação de obras das mais variadas matérias e disciplinas, sendo ele próprio autor ou colaborador de muitas delas.

El Libro del Saber de Astronomía
Colaborou nesta obra baseada no sistema ptolomaico. Esta obra teve a participação de vários cientistas que o rei congregara e aos quais proporcionava meios de estudo e investigação, tendo mesmo mandado instalar um observatório astronómico em Toledo. É formado por 16 livros ou tratados nos quais descreve as esferas celestes e os instrumentos astronómicos então existentes. O primeiro é um catálogo das estrelas, constelação por constelação. Os seguintes nove tratados (do II à X) estão, juntamente com o último, dedicados à construção e uso dos instrumentos astronómicos. Os tratados XI a XV ocupam-se de diversos tipos de relógios, dada a necessidade de estabelecer a hora de nascimento com o maior rigor possível para poder estabelecer horóscopos correctos. Este pode ter sido um dos objectivos que motivou Afonso X a traduzir e a redigir textos astronómicos. Por isso é também chamado o Livro do Saber de Astrologia.



São una revisão e ampliação das Tabelas Toledanas realizadas dois séculos antes por Al Zarqali. Foram muito utilizadas posteriormente pelos navegadores europeus dos séculos XV e XVI.

Considerado o “seu” primeiro livro, é um tratado médico e mágico sobre as propiedades de algumas pedras em relação com a astronomia (astrologia).


O “jogador”
Considerado o “seu” último livro (1283), consta de 98 páginas e umas 150 miniaturas a cores. Trata do xadrez, que classifica de "juego de reyes y gente noble e inteligente", do jogo de dados, do “alquerque”, jogo árabe (al qirkat) que, chegado à Europa se serviu do tabuleiro de xadrez, dando lugar ao jogo das damas, do gamão e de outros jogos de mesa.

Ao apresentar as mulheres a jogar xadrez, o jogo da actividade intelectual por excelência, o rei quis mostrar que a inteligência não é prerrogativa de nenhum sexo. Também nisto o Rei estava adiantado para o seu tempo.

Com um avô desta craveira, não é de admirar que o seu neto, D. Dinis, fosse um grande trovador e criasse a Universidade de Coimbra, entre muitas outras actividades governativas.


Com um abraço e votos de um Natal com muita alegria e paz interior para os meus amigos e leitores, que não sei "onde estão" (u é?):

Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
       Ai Deus, e u é?

Ai, flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
      Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pos comigo!
      Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi ha jurado!
      Ai Deus, e u é?

- Vós me preguntades polo voss'amigo,
e eu ben vos digo que é san'e vivo.
      Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss'amado,
e eu ben vos digo que é viv'e sano.
      Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san'e vivo
e seerá vosc'ant'o prazo saído.
      Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv'e sano
e seerá vosc'ant'o prazo passado.
      Ai Deus, e u é?

D. Dinis: CBN 568; CV 171


E aconteceu Copérnico
Nicolau Copérnico de seu verdadeiro nome Mikołaj Kopernik, depois latinizado para Nicolaus Copernicus, nasceu na Polónia (Toruń, 19.Fev.1473) e morreu em Frauenburg (hoje Frombork), a 24.Maio.1543.
Frequentou várias universidades europeias, era perito em economia e conselheiro económico, foi nomeado cónego da catedral de Frauenburg por influência de seu tio. Mas a sua grande paixão foi a Astronomia, com a qual se entusiasmou depois de, ainda estudante, ter adquirido uma cópia das Tábuas Afonsinas, que o deixaram obcecado pelo movimento dos planetas.
Leu um resumo do Almagesto e estudou a teoria aristotélico-ptolomaica que cada vez achava menos consistente. Talvez fosse influenciado pelo grande astrónomo Novara, simpatizante da tradição pitagórica, na qual se baseava o modelo heliocêntrico de Aristarco. Aliás foi com Novara que fez a sua primeira observação científica: a ocultação da estrela Aldebarã pela Lua (9.Março.1497). Também deve ter lido os antigos textos gregos que falavam de uma Terra em rotação. Então apercebeu-se de duas coisas:
- se a Terra rodasse sobre o seu eixo, ficaria explicado tanto o motivo pelo qual as estrelas giravam em torno da Terra, como o problema do seu “movimento rápido”, uma vez que, assim, não se moviam;
- se a Terra rodasse em torno do Sol, isso simplificaria as órbitas planetárias e explicaria facilmente o fenómeno da retrogradação.

Em 1510 acabou a redacção manuscrita do Commentariolus, de seu nome completo Nicolai Copernici de hypothesis mottum coelestium a se constitutis commentariolus (Pequeno comentário de Nicolau Copérnico sobre as hipóteses relativas aos movimentos celestes), no qual expôs pela primeira vez a sua teoria heliocêntrica. Este “Pequeno Comentário” de cerca de 20 páginas era uma tentativa para acabar com a enorme complexidade ptolomaica.


Nele estabelece os sete axiomas ou princípios fundamentais, nos quais baseava a sua visão do Universo:
1.Os corpos celestes não têm um centro comum.
2. O centro da Terra não é o centro do Universo, mas apenas da órbita lunar.
3. O centro do Universo está perto do Sol.
4. A distância entre a Terra e o Sol é insignificante quando comparada com a distância às estrelas.
5. O movimento aparente do céu deve-se à rotação da Terra em torno do seu próprio eixo.
6. O movimento anual aparente do Sol é resultado da translação da Terra à volta do Sol; todos os planetas giram em torno do Sol.
7. As estações e os movimentos retrógrados aparentes dos planetas são explicados simplesmente pelos movimentos da Terra e dos planetas em redor do Sol.

Quando o tio morreu, deslocou-se para o castelo da sua cidade. Aí construiu um observatório, onde passou trinta anos a fazer observações para fundamentar a sua teoria, aumentando o seu Commentariolus até atingir centenas de páginas, que depois seriam publicadas com o título De Revolutionibus.

Reacções
Porque tinha a noção de quão revolucionária era a sua teoria e como era tímido, receava tanto as reacções dos leitores que chegou a pensar em acabar com tudo: “Quando dediquei algum tempo à ideia, o meu receio de ser desprezado pela sua novidade e o aparente contra-senso, quase me fez largar a obra feita".
Mas as reacções, sobretudo dos Protestantes não eram nada animadoras.
Lutero escreveu: “Fala-se por aí de um novo astrónomo que quer provar que a Terra se move e anda à volta em vez do céu, o Sol e a Lua, como se alguém que se movesse numa carruagem ou navio pretendesse que estava imóvel, enquanto a terra e as árvores se moviam. Mas é assim que tudo vai em nossos dias: quando um homem quer parecer inteligente é preciso que invente qualquer coisa especial, e o modo como o consegue deve parecer o melhor! O louco quer virar toda a arte da astronomia de cabeça para os pés. E, no entanto, como nos dizem as Sagradas Escrituras (Jos 10,13), foi Josué quem mandou parar o Sol e não a Terra.” (Luiz O.Q. Peduzzi, p. 85).
E Calvino perguntava: “Quem se atreverá a colocar a autoridade de Copérnico acima da autoridade do Espírito Santo?” .
A Igreja Católica, nessa altura, até o apoiava, talvez porque, quando começaram a circular, em 1529, as suas conclusões eram apresentadas apenas como hipotéticas. Em 1533, o papa Clemente VII solicitou uma exposição de sua teoria. E três anos depois, o cardeal Schoenberg pedia-lhe que os desse a conhecer ao mundo culto: “Fui informado de que não somente possuís um exaustivo conhecimento das matérias dos antigos matemáticos como também criastes uma nova teoria do universo segundo a qual a Terra se move e o Sol ocupa a posição básica e, portanto, central, que a oitava esfera (a das estrelas fixas) permanece em posição imóvel e eternamente fixa, e a Lua, com os elementos incluídos na sua esfera, colocada entre as esferas de Marte e Vénus, gira anualmente em torno do Sol; soube mais que escrevestes um tratado sobre esta teoria inteiramente nova de astronomia, e calculastes os movimentos dos planetas e os pusestes em tabelas, para a maior admiração de todos. Por conseguinte, sem desejar ser inoportuno, peço-vos, insistentemente, comuniqueis o descobrimento ao mundo culto, e me envieis o mais breve possível as vossas teorias sobre o universo, com as tabelas e tudo o mais pertencente ao assunto.” (Luiz O.Q. Peduzzi, p. 85).

De Revolutionibus
Foi então que surgiu o jovem astrónomo luterano Rheticus (1514-1574), que, com o entusiasmo dos seus 23 anos, o estimulou a continuar. E foi ele que, em 1541, decidiu, com o consentimento de Copérnico, que entretanto sofrera uma hemorragia cerebral, publicar os extensos apontamentos do mestre, com o título De revolutionibus orbium coelestium, libri VI (Sobre as revoluções dos orbes celestes, em seis livros). Mas, como teve de se ausentar para Leipzig, delegou essa tarefa no teólogo luterano Andréas Osiander, que publicou o livro, em 1543, exactamente no ano da morte do autor.


Sem o conhecimento de Copérnico, alguém introduziu inúmeras alterações no Prefácio, o que retirou muita da força “revolucionária” ao pensamento de Copérnico e vai contra o conteúdo do próprio livro:
- transformou a sua teoria numa mera “hipótese”, que “não tem que ser verdadeira ou mesmo provável”;
- sublinha os “absurdos” da teoria heliocêntrica;
- destaca a falta de uma coerência” razoável” com as observações.
Sabe-se desta falcatrua, porque hoje conhece-se o prefácio original, no qual Copérnico mostra que já contava com os críticos: “Talvez apareçam tagarelas que apesar de completamente ignorantes em matemática, se encarreguem de dar opiniões sobre questões académicas e, distorcendo gravemente algumas passagens da Escritura de acordo com os seus propósitos, se atrevam a encontrar falhas no meu trabalho e a censurá-lo. Ignoro-os ao ponto de desprezar as suas críticas como infundadas”.
E também não é difícil deduzir que o “criminoso” foi Osiander, porque era luterano e porque numa carta dirigida a Copérnico, em 1541, lhe sugeria que fosse cauteloso: “Eu sempre acreditei que as hipóteses não são artigos de fé, mas bases para cálculos; de modo que não importa que sejam falsas, desde que esses últimos reproduzam exactamente as aparências dos fenómenos. Com efeito, se seguirmos as hipóteses de Ptolomeu, quem nos dirá se o movimento irregular do Sol se dá em razão de um epiciclo ou de uma excentricidade, posto que os dois dispositivos podem explicar os fenómenos? Seria, portanto, desejável que abordasses ao de leve esse assunto na tua Introdução. Dessa maneira, poderás apaziguar os peripatéticos e os teólogos cuja posição temes.”

Críticas
Depois da publicação, as reacções não foram nada famosas.
A Igreja católica aceitou o livro talvez por causa do "falso" prefácio que falava em “mera hipótese” ou pela dedicatória ao papa Júlio III: Ad Sanctissimum Dominum Paulum III Pontificem Maximum.
Mas foi sol de pouca dura sobretudo depois da sua defesa por parte de G. Bruno, que, como se sabe, viria a ser queimado pela Inquisição devido às suas ideias filosóficas sobre o Universo infinito. Em 1584, Giordano Bruno propõe uma cosmología não hierárquica, na qual o Sistema Solar copernicano não é o centro do Universo, mas antes, um sistema de estrelas relativamente insignificante, entre uma multidão infinita de outros.
Em 1616, o De Revolutionibus teve a honra de entrar no Index dos livros proibidos, mas apenas por um curto período, sendo novamente apagado depois de pequenas adaptações feitas pelos censores eclesiásticos.

Da parte dos colegas, o livro também não colheu, do que o próprio Copérnico não está isento de culpa:
- o estilo de escrita,  em que escreveu um texto de quatrocentas páginas denso e complexo, era deplorável;
- o seu nome não era conhecido entre os artistas do mesmo ofício;
- a sua precisão perante as observações era inferior à do sistema ptolomaico;
- era demasiado radical para alguns: há até quem defenda que a palavra “revolução” derivou do título do livro De Revolutionibus;
- não era “evidente”, pois todos viam que o Sol é que andava em volta da Terra.

Navalha de Occam
O seu modelo só tinha um atractivo científico: era muito mais simples que o de Ptolomeu. E a simplicidade (bem como a “beleza”) é muito querida no campo da ciência: “pluralitas non est ponenda sine necessitate” (a pluralidade não deve ser usada a não ser em caso de necessidade).


Este princípio afirma que a explicação de um fenómeno deve assumir apenas as premissas estritamente necessárias. E como a sua autoria foi atribuída ao frade franciscano inglês Ockham (século XIV) ficou conhecido por “navalha de Occam”. Contudo não se lhe conhece esta frase, mas uma outra semelhante: entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem (as entidades não devem ser multiplicadas para além do necessário). Dando um exemplo banalíssimo: se eu quero ir de Coimbra para Lisboa posso ir pela auto-estrada A1 ou poderia ir até Madrid e voltar para Lisboa.Seguindo o critério da "navalha de Occam", o trajecto mais adequado deve ser o da auto-estrada A1, porque é o que tem menos quilómetros e demora menos tempo.
No caso do sistema de Copérnico, a explicação da retrogradação de Marte era mais simples do que no sistema de Ptolomeu: uma órbita circular daquele tem menos complicações que as reviravoltas deste.

Retrogradação de Marte: (a) no modelo heliocêntrico; (b) no modelo geocêntrico
Fonte: BIG BANG, p. 41


HOMEM DE TRANSIÇÃO
Como todos os personagens que vivem um tempo de transição, Copérnico sentia a dificuldade de querer exprimir o novo sem ter instrumentos adequados. Misturou o novo e o antigo, numa confluência do que ia deixar de ser e do que viria a ser. Tivera uma formação tradicional, que não deixou de o marcar profundamente., embora soubesse que o antigo não respondia correctamente à realidade. Não era um antigo nem um moderno, mas um astrónomo da Renascença, no qual se misturava as duas tradições. Era uma mistura de “cientista”, nas suas observações e intuições, com algo de “místico” na hora da  interpretação: perguntava em que lugar, melhor do que o centro do sistema solar, poderia o Criador ter situado a lâmpada que ilumina o mundo.


Não pôs em causa o universo esférico e finito, o movimento circular uniforme, as orbes e esferas, porque o circular e o esférico eram indicativos de perfeição. Assumiu a imperfeição do mundo sublunar e admitiu a quintessência. Tentou, à falta de melhor, atacar Aristóteles adaptando as premissas aristotélicas: esforçou-se ao máximo para encaixar movimento da Terra dentro de uma estrutura baseada na física antiga.
Mas, apesar destas dificuldades todas, ele foi capaz de introduzir rupturas:
- enquanto o modelo ptolomaico era “casuístico”, considerando planeta a planeta, Copérnico estabeleceu um modelo mais coerente e “económico”;
- tirou a Terra do centro para lá colocar o Sol.

O seu modelo não produziu as consequências revolucionárias que tinha no seu seio, porque era uma ideia demasiado avançado para o seu tempo, demasiado revolucionária, demasiado inacreditável e até demasiado imprecisa para poder conquistar apoio generalizado.
Assim, na evolução do pensamento científico, Copérnico aparece como o homem que preparou e permitiu a verdadeira revolução que viria no século XVII, como dizia Goethe, que também fez uma incursão pelo campo científico:
“De todas as descobertas e opiniões, nenhuma deve ter exercido um efeito maior no espírito humano do que a doutrina de Copérnico. O mundo mal se tinha tornado conhecido como redondo e completo nele mesmo, quando lhe foi pedido para abdicar do tremendo privilégio de estar no centro do Universo. Nunca, talvez, tal exigência foi feita à Humanidade – pois, ao admiti-lo tantas coisas desapareceram em névoa e fumaça! O que aconteceu com o Éden, nosso mundo de inocência, piedade e poesia; o testemunho dos sentidos; a convicção numa fé poético-religiosa? Não foi à toa que os seus contemporâneos não quiseram abrir mão de tudo isso e ofereceram toda a resistência possível a uma doutrina que autorizava e exigia dos seus fiéis uma liberdade de visão e uma grandeza de pensamento desconhecidas até então, de facto nem mesmo sonhadas”.

Copérnico cumpriu a sua missão. Com todas as suas limitações, deixou novas linhas de ruptura, que só esperavam que alguém as fizesse desabrochar, o que, felizmente, não demorou muito tempo.




Referências bibliográficas

(1*) Bruce S. Eastwood, Heraclides and Heliocentrism: Texts, Diagrams, and Interpretations in Journal for the History of Astronomy, 23(1992) 233-260 (p. 256).
(2*) Esta informação foi tirada do livro BIG BANG (ver fontes); contudo encontrei uma referência que atribuía este nome ao planeta Mercúrio.
(3*) É um termo genérico especialmente aplicado a tradições religiosas politeístas, embora a partir de uma perspectiva cristã, podendo abarcar todas as religiões não abraâmicas, isto é, as que não dependem de Abraão: judaísmo, cristianismo e islamismo.

Além dos sites indicados, principais Fontes sobre Copérnico
GERALDO MONTEIRO SIGAUD, Copérnico e Kepler: como a terra saiu do centro do universo.
SIMON SINGH, Big Bang (Gradiva).
CHARLES VAN DOREEN, Breve História do Saber (Caderno da Asa).
LUIZ O. Q. PEDUZZI (Departamento de Física, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil), Evolução dos Conceitos da Física. Força e movimento: de Thales a Galileu (Publicação interna).

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